Caminhos e posturas para preservar o rio Paranapanema e Piraju de novas
usinas hidrelétricas
Foto: Fernando Franco Amorim/Organização Ambiental Teyquê-Pê (OAT)
Legenda: Salto Piraju, Garganta do Diabo
*Rodnei Vecchia
Panema vivo: cuidaremos de você!
Transparente, encantador, generoso e liberto.
Barreiras só a quem ousar barrá-lo!
Em 2011, a Energias
Complementares do Brasil Geração de Energia Elétrica S/A, ora denominada EC
Brasil, empresa com sede em
Porto Alegre , Estado do Rio Grande do Sul, constituída em
2006 com capital social de R$ 1,45 milhão, desconhecida nacionalmente e sem
nenhuma expertise na área de hidrelétricas, apresentou proposta de construção
de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) em Piraju.
A proposta de uma nova usina
hidrelétrica gerou muitos questionamentos e dúvidas na comunidade, mas há
respostas convincentes para todos os questionamentos. Quem se interessar por
aprofundar-se no tema, sugiro ler meu livro Energia das Águas, que possui um
capítulo inteiro dedicado a esse tema.
Piraju se prepara para aquela que
pode ser a mãe de todas as batalhas: permitir ou não a obra na cidade. O local
pretendido encontra-se no último trecho de calha natural do rio Paranapanema,
paisagem deslumbrante onde estão o Salto Piraju, quedas d’água, corredeiras e
mata ciliar primária remanescente do bioma Mata Atlântica, que protege as águas
e a rica biota local.
O Salto Piraju, também chamado de
Garganta do Diabo, é a certidão de nascimento da Estância Turística de Piraju,
patrimônio histórico da cidade. Localizado no único trecho urbano do rio
Paranapanema, ainda mantém suas características originais. Essa paisagem
deslumbrante seria extinta com a implantação de uma nova usina no local.
Tudo indica que a maior parte da
sociedade pirajuense não quer a nova usina. Esse sentimento está expresso em
diversos movimentos da sociedade e poder público local, que produziram um vasto
acervo de leis e posturas que impedem novas usinas. E também em todo histórico
das hidrelétricas existentes na região, as quais pouco contribuíram para o
desenvolvimento da economia local, de forma sustentável.
Para a construção de
empreendimentos ao longo do rio Paranapanema faz-se necessário obedecer ou, no
caso de novas usinas, modificar ou revogar diversas leis e posturas municipais
de proteção ao maior patrimônio pirajuense, arcabouço construído ao longo de décadas
de engajamento da comunidade local. São elas:
1. A lei que instituiu o Plano
Diretor (Lei no 2.792, de 8 de junho de 2004) e define que a área pretendida
para usina é considerada de preservação ambiental e para desenvolvimento do
turismo, além de preservar uma faixa de 500 metros ao longo das margens do rio.
2. A Lei Orgânica do Município de
Piraju, que impede a construção de novas usinas hidrelétricas no rio (art.
187).
3. A Resolução do Conselho
Municipal de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (Resolução no 1, de 2 de
agosto de 2002), que tomba 7 km do trecho de calha natural do rio, por ser
dotado de elementos de valor cênico, paisagístico e cultural para a comunidade.
4. A Lei do Interregno (Lei no
2.654, de 12 de setembro de 2002), que fixa o prazo de 20 anos para se discutir
ou não a construção de novas usinas hidrelétricas.
5. A Lei de Criação da Unidade de
Conservação de Proteção Integral (Lei no 2.634, de 26 de junho de 2002), que
criou o Parque Natural Municipal do Dourado. Em agosto de 2014 o parque foi
incluso no Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, pelo Ministério
do Meio Ambiente.
6. Lei Complementar nº 143, de 26
de junho de 2013, que discorre sobre a política ambiental, em especial seu
artigo 10, inciso XXIX: “vedados o uso industrial, empreendimentos
agroindustriais, usinas hidroelétricas e parcelamento do solo para fins urbanos
...”.
7. Diretrizes da política
municipal de meio ambiente, do Sistema Municipal de Meio Ambiente e Patrimônio
Cultural de Piraju (SISMMAP), que definem o rio como patrimônio dos cidadãos.
Ainda que a sociedade pirajuense
decida abrir mão de todo esse importante cabedal institucional em face de uma
nova usina em suas águas, deve-se obter a aprovação estadual pelos EIA e pelos
RIMA e vencer o artigo 196 da Constituição do Estado de São Paulo, que inclui o
vale do rio Paranapanema dentre os espaços territoriais especialmente
protegidos e assegura sua preservação ambiental.
Há que se obter também aval do
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama), visto que o rio Paranapanema é de legislação federal. Nesse âmbito,
está em vigor a Lei do Código Florestal de 1965, ampliada pela Lei no
7.511/1986, que define uma APP como as faixas que vão de 30 a 200 m ao longo de
cursos d’água.
A obra de uma nova usina fere
também o comprometimento internacional do Brasil como signatário da Convenção
de Ramsar, ratificada pelo Decreto no 1.905/1996, no qual o país se compromete
com o desenvolvimento de uma política especial de proteção de zonas úmidas.
Essas áreas têm como limite a linha máxima das enchentes.
O arcabouço institucional
municipal é o retrato da formação da consciência ambiental do povo pirajuense
ao longo de décadas. Os temas ambientais são espinhosos e foram discutidos à exaustão
entre comunidade e poderes constituídos, e devidamente aprovados pela vontade
soberana e democrática da maioria da população.
Em um regime político
democrático, esse status ambiental pode mudar, desde que a maioria do poder
legislativo e o executivo assim entendam, mas nunca sem antes ouvir a voz da
coletividade – que já se mostrou, em sua maioria, contrária a novas obras de
usinas na região.
Todos os movimentos contrários à
construção de uma nova usina em Piraju, entre 2010 e 2012, surtiram efeito. Em
julho de 2012, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) enviou à
EC Brasil um ofício que comunica a impossibilidade da emissão do Termo de
Referência de Avaliação Ambiental de Empreendimento para a denominada PCH
Piraju II, e arquivou o Processo Impacto no 124/2012.
Essa decisão foi referendada
também pela Aneel, por meio da Superintendência de Estudos Hidroenergéticos
(SGH) em agosto de 2012, que arquivou o Processo no 48500.002.154/2010, em
função da existência dos inúmeros recursos legais que impedem tal obra.
Mas apesar de tantas decisões
desfavoráveis, o Ministério Público do Estado de São Paulo - MPSP, por meio da
Procuradoria Geral de Justiça - PGJ, instaurou a partir de representação da
empresa EC Brasil, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIn, para
suspender a eficácia das posturas legais municipais que protegem o trecho de
corredeiras do rio Paranapanema, por entender que são inconstitucionais.
A ADIn considera essas posturas
legais uma afronta aos princípios da harmonia e independência dos poderes
consignados pela Constituição Federal do Brasil. Tem como embasamentos
principais os seguintes tópicos:
- ao proibir a construção de
usinas hidrelétricas, limitar e condicionar a exploração do potencial
hidroelétrico do Rio Paranapanema no âmbito do Município de Piraju, os atos
normativos impugnados violam o princípio federativo, haja vista tratarem de
matéria de competência da União.
- trata-se de usurpação da
competência legislativa privativa da União com violação do princípio federativo
(artigo 1º da Constituição Estadual), pois, o Rio Paranapanema por banhar dois
Estados e pelo seu potencial de energia hidráulica é bem da União (artigo 20,
III e VIII e 176 da Constituição Federal). Compete a União, portanto, a
exploração, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, do
aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados
onde se situam os potenciais hidroenergéticos (artigo 21, XII, b da
Constituição Federal). Não é o Município competente para legislar a respeito de
águas e energia (artigo 22, IV da Constituição Federal).
- de outro lado, o ato do
tombamento traz limitação e condicionamento ao uso e aproveitamento do trecho
tombado do rio, submetendo a aprovação e licenciamento pela municipalidade.
Trata-se de inconstitucional limitação não só ao exercício da competência legislativa
da União, mas ao próprio uso e regulamentação de um bem de seu domínio.
- ao proibir, limitar e
condicionar o licenciamento municipal a exploração do potencial hidroenergético
do Rio Paranapanema na área do Município de Piraju, o legislador municipal
extrapolou sua competência limitada a disciplinar matéria de interesse
predominantemente local.
- entende também o Ministério
Público que compete ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) as
regulamentações para concessão de licenciamento de atividades efetiva ou
potencialmente poluidoras (art.8°, da lei n° Lei no 6.938, de 31 de agosto de
1981). Cabe ao município somente atuação administrativa para a promoção do
licenciamento ambiental em matérias relativas à proteção das paisagens naturais
notáveis, à proteção do meio ambiente, combate à poluição em qualquer de suas
formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora.
- não é o Município competente
para regulamentar a utilização do Vale do Paranapanema, espaço territorial
especialmente protegido pela Constituição Estadual, nos artigos 196, 205 e 212.
- a competência suplementar do
Município aplica-se, nos assuntos que são da competência legislativa da União
ou dos Estados, àquilo que seja secundário ou subsidiário relativamente à
temática essencial tratada na norma superior.
- legislar sobre bens federais é
assunto que não se situa no domínio normativo periférico dos municípios, razão
pela qual por este motivo restaram violados os artigos 1,5, 10 e 144 da
Constituição Estadual.
Baseado nesses preceitos o MPSP
pediu em 10 de julho de 2014 liminar para suspender a eficácia da não concessão
de autorização para a construção da usina pela empresa EC Brasil, até o
julgamento do mérito da ADIn, mas tal pedido foi indeferido pelo Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo.
No entanto, a ADIn foi julgada e
acatada em 25 de fevereiro de 2015 pela maioria dos desembargadores e segue seu
lento e complexo curso normal. Não há dúvidas que algumas posturas municipais
ultrapassaram seus limites, mas refletem a alma da consciência ambiental e
ética da comunidade pirajuense.
Inicia-se um longo embate
jurídico em instâncias superiores, vis a vis os inúmeros interesses envolvidos.
A decisão mais prudente, equilibrada e de bom-senso seria esperar, conforme lei
em vigor no município, o interregno de 20 anos para avaliar, com mais rigor e
profundidade, os impactos de uma usina na comunidade, em função das já
existentes. Levará anos a fio para que a ADIn transite em julgado, o que pode
favorecer um ou outro lado em função das inúmeras variáveis em jogo nos
cenários econômico, social, legal, ambiental e político em âmbitos local,
regional ou global.
Enquanto isso os movimentos
sociais pirajuenses já se mobilizam para lutar pela manutenção das leis de
proteção do rio e seu entorno. A terceira geração de pirajuenses certamente irá
continuar o processo de conscientização ambiental das belezas ímpares da
cidade, construída por longos anos de batalhas e mobilização popular da
comunidade, que em passagens épicas e históricas, abraçou o Panema em sinal de
amor, e proteção.
Uma decisão que poderia por fim
aos embates da nova usina seria obter junto ao Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (CONDEPHAAT) o
tombamento do último trecho de calha natural do rio onde se encontra a certidão
de nascimento da cidade, o Salto Piraju.
Cabe ao Poder Público pesquisar,
identificar, proteger e valorizar o patrimônio cultural paulista, por meio do
CONDEPHAAT e a Constituição Estadual de São Paulo, em seu Artigo 260, item IV
prevê que constituem patrimônio cultural estadual: “... os conjuntos urbanos e
sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico”.
As escolas de nível superior da
cidade podem incentivar estudos e trabalhos de conclusão de curso que esmiúcem
os impactos positivos e negativos das usinas no município e seu entorno.
O poder público municipal também
deve contar com técnicos competentes para acompanhar e avaliar o que essas
empresas de energia proporcionam aos seus munícipes. Deve desenvolver estudos
de alto nível que possam elucidar o que é o negócio energético para o local e
quais os caminhos para o desenvolvimento sustentável do município.
A região da bacia do Paraná,
especificamente a do rio Paranapanema, está bem servida de energia e, na
verdade, “exporta” eletricidade para outras regiões do país. O rio Paranapanema
é um dos rios que mais energia produz para o Brasil – 5% do potencial
brasileiro. Suas onze usinas têm capacidade instalada de 2.580 MW, suficientes
para abastecer uma cidade do porte do Rio de Janeiro por um ano. Piraju, em
particular, já contribui, e muito, para a sociedade brasileira com o
fornecimento de energia.
Para o desenvolvimento da cidade
em médio e longo prazos, não é estratégico a construção da usina no local
proposto. Piraju consome por volta de 3,7 mil megawatt-hora (MWh), e as três
usinas instaladas na cidade têm capacidade instalada de 210 MW, suficientes
para atender mais de 20 cidades do mesmo porte durante um ano inteiro. Além do
mais, no local pretendido, há rica biodiversidade, que será seriamente afetada
e de forma irreversível, comprometendo uma série de serviços ambientais
prestados pelo rio gratuitamente.
A EC Brasil não é uma empresa com
suporte financeiro e com expertise suficiente para a obra e suas consequentes
derivações ambientais de contrapartidas. O histórico de apenas cinco anos de
vida dessa empresa é mais afim com energia eólica, nunca executou nenhuma obra
de usina hidrelétrica e, nessa área, é uma ilustre desconhecida.
Uma usina altera paisagens de
maneira irreversível e exige compromissos de longo prazo, que pode chegar a
séculos. É uma temeridade entregar parte do maior patrimônio da cidade a uma
empresa de pouca ou nenhuma expressão nacional na área. Os estudos preliminares
e as respostas apresentadas pela EC Brasil aos pirajuenses denotam
desconhecimento, despreparo e análise superficial da realidade econômica,
social, histórica e ambiental do município.
A PCH não vai gerar recursos
financeiros diretos ao município, somente poucos recursos do ICMS. A cidade não
receberá a compensação financeira, pois esse encargo só é repassado onde há
usinas com potencial superior a 30 MW. As outras usinas instaladas no
município, pelo menos, geram um valor mensal perpétuo, cujos recursos podem ser
canalizados para o turismo.
Portanto, não é recomendável
construir uma nova usina hidrelétrica no município nos moldes do que está sendo
proposto. Curvar-se ao poder econômico para implantar uma obra à custa do
patrimônio ecológico e cultural, maior riqueza do município, significa
privilegiar uma visão estreita, de curto prazo, que vai contra as posturas de
desenvolvimento econômico, social e ambiental sustentável.
Mais que nunca a comunidade tem
novamente que se mobilizar para fazer valer sua vontade soberana. E que essa
seja a última das batalhas, para que se possa desfrutar por definitivo da paz
proporcionada pelas águas límpidas e já muito barradas do rio Paranapanema.
*Pirajuense, ambientalista,
escritor e especializado em administração de empresas pela FGV-SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário